Era uma manhã cinzenta na metrópole. Carros buzinando, fumaça no ar, e aquele caos urbano de sempre. Mas, em meio à selva de concreto, havia um homem que dominava o asfalto com maestria e coragem: Rodriguinho Rápido, o motoboy mais lendário da Zona Leste.
Ele entregava de tudo — de pizza a documentos secretos — e sempre no tempo recorde. Tinha um cabelo espetado, uma jaqueta cheia de adesivos de oficina e, claro, o temido coturno preto n° 42, com cadarços vermelhos e sola grossa, que parecia ter pisado em pelo menos três dimensões diferentes.
Do outro lado da cidade, vivia Felipe, um jovem sonhador, designer freelancer e observador de comportamentos urbanos. Mas, no fundo do coração, guardava um desejo que nem ele conseguia explicar direito:
Ele queria ser pisado pelo coturno de um motoboy.
Mas não qualquer um. Tinha que ser o Rodriguinho.
Felipe acreditava que dentro daquele coturno existia uma energia crua, uma sabedoria sobre tempo, trânsito e sobrevivência que só poderia ser absorvida… com uma boa e velha pisada.
E numa tarde chuvosa, o destino uniu essas duas almas.
Felipe encomendou um sanduíche no app — mas não qualquer sanduíche. Um combo místico de picanha com molho extra, exatamente o tipo de entrega que só os motoboys veteranos pegavam.
Do portão de seu prédio, viu a aproximação: o ronco da moto, o brilho do capacete espelhado, e, descendo da moto, o homem.
Rodriguinho tirou a mochila, checou o nome:
— Felipe G.?
— Sou eu. Pode deixar aí no chão, por favor…
— No chão? Tá chovendo, parça.
— Confia. É importante.
Rodriguinho, confuso, colocou o pacote no chão. Felipe então se abaixou como quem ia pegar, mas deixou propositalmente a mão ali, ao lado da sacola. E quando Rodriguinho deu um passo pra trás, distraído…
PAF.
A sola do coturno esmagou sua mão com a força de mil escapadas de radar.
— AI! — gritou Felipe, com um sorriso de êxtase.
Rodriguinho pulou pra trás.
— Cê tá maluco, irmão?!
Felipe, suando de emoção:
— Foi lindo… Foi… perfeito. Agora eu entendo o caos da cidade. Sinto que posso atravessar uma marginal com os olhos fechados.
Rodriguinho deu dois passos lentos pra trás, sem saber se era pegadinha ou se o cara precisava de ajuda psiquiátrica.
— Cê é doido, mas estiloso. — disse ele, subindo na moto. — Valeu pela vibe, mano.
E sumiu entre os carros, como um fantasma sobre rodas.
Desde então, Felipe passou a andar de coturno. Não porque era estiloso. Mas porque queria, um dia, pisar em alguém que também estivesse pronto para entender a sabedoria do asfalto.